segunda-feira, 26 de março de 2012

Renascer

A noite se foi. Aquela noite longa demais, que durou meses a fio. Aquela noite em que percebi todos virem me ver nesta cama de hospital, lutando entre a vida e a morte. Bem, pelo menos era o que eles imaginavam. Eu já havia desistido a muito tempo desta vida. Já tinha aberto mão da luz do sol, do cheiro do mar no verão e das flores na primavera, da sensação da grama nos pés. O vento invernal já não me interessava mais; nem mesmo as folhas pálidas caindo no outono.
Várias vezes eu pensei em acordar e dizer a todos para desistirem de mim. Pensei em levantar eu mesma e desligar os aparelhos que me mantinham ali, viva. Nada mais tinha sentido. Eu não tinha nenhuma razão para continuar aquela luta inútil. Nada era como eu queria que fosse; como eu precisava que fosse.
Sonhei ouvir aquela voz doce mais de uma vez durante aquela noite. Parecia que estava sempre ali, choramingando, falando comigo. Sentia que estava muito próxima, me contando como haviam sido os últimos dias, o que tinha mudado; o que continuava o mesmo. Recordo-me de ouvir mais de uma vez os mesmos fatos. Lembro que me perguntava o porquê de tudo aquilo. Diziam-me para resistir. Sempre tinha uma voz à minha volta. Normalmente eu não sabia de quem era. Elas iam e vinham como nuvens levadas pelo vento.
Percebo então que só há silêncio. Não existe nenhuma voz à minha volta. Aguço os ouvidos para tentar captar qualquer ruído. Nada.
Começo a abrir os olhos. Sinto que a luz queima minhas retinas fragilizadas. Fecho novamente e tento abrir mais devagar, até acostumar-me com a luz. Consigo identificar a luminária bem acima da minha cabeça. Luxuosa demais para um hospital, penso eu. É adornada com pequenos pedaços de vidro. Viro um pouco a cabeça para a direita e vejo o maquinário ao qual minha vida está intimamente ligada. O pedaço de metal ao qual devo minha quase ressurreição.
Do outro lado da minha cama, também luxuosa, cheia de travesseiros, há uma pequena mesa. Reconheço algumas flores bonitas. Rosas, lírios, copos de leite. Há também alguns cartões e cartas empilhadas. Mais distante avisto a janela, com sua cortina branca e leve, com várias camadas de rendas e outros tecidos finos. Reparo uma outra mesa pequena. Nela repousam um cartão, um vaso com água e apenas uma rosa branca.
Tento erguer meu corpo para observar o restante do quarto, que começo a reconhecer como sendo o meu próprio. O tom gelo das paredes, com os desenhos delicados de cerejeiras começam a surgir em minha visão. Meu tronco não se move. Parece que estou amarrada, ou então perdi a habilidade de me mover totalmente. Faço força para levantar o braço esquerdo e, magicamente, consigo. Fico imaginando o que posso fazer agora que reaprendi a mover meu braço.
Lentamente consigo erguer o braço esquerdo e pressionar meu corpo para cima. Sento-me na cama e continuo olhando, tentando recordar de cada detalhe de meu quarto. Logo a frente da cama está a porta de madeira clara, com sua maçaneta dourada e a mandala pendurada. O armário está fechado, como sempre, e posso ver meu reflexo no espelho da porta. Eu estou mais magra que de costume. O rosto fino demais indica o tempo que passei sem me alimentar bem.
Forço-me a esquecer de detalhes como minha aparência e continuo minha análise. A cômoda de madeira, com todas as coisas em cima continua intacta, a pequena poltrona está no canto do quarto, arrumada, sem minhas roupas jogadas, porém não está vazia. Não reconheço de imediato, mas sei que não é um desconhecido. Parece estar dormindo e há bastante tempo. Começo a reconhecer o homem ali sentado e fico boquiaberta.
O cabelo escuro está mais longo, a barba rala por fazer. Os delicados olhos fechados, mas sei que são negros como a noite. As olheiras estão mais escuras, provavelmente ele não dorme profundamente há semanas, talvez meses. A boca macia não esboça mais um sorriso tão belo, mas está séria, como se preocupado com algo sério demais. Os braços estão cruzados sobre o peito. A camisa aparenta estar amassada devido ao tempo que está ali, meio sentado, meio deitado, naquela poltrona pequena.
Tento falar, mas somente deixo escapar um som estranho. Minha garganta está seca demais para que saia uma palavra de verdade. Ele se mexe, reagindo ao ruído no quarto silencioso. Cubro minha boca com uma das mãos para que o som não se repita, porém perco o equilíbrio e, caindo, solto um grito rouco.
Ele acorda. Vejo seus olhos se abrindo, como pedras de ônix brilhando à leve luz branca. O sorriso que eu tanto desejei ver se estampa em seu rosto, seguido pela confusão. Ele está confuso, não sabe se fala, se vem em minha direção ou se sai para chamar alguém. Vejo seus pés se movendo em direção à porta, porém eles param e começam a caminhar em minha direção. Sinto o cheiro suave que tantas memórias me trazem.
“Que bom que acordou. Que bom que finalmente acordou.”
Aquela voz doce que eu escutava todos os dias. A voz que eu almejo escutar mais do que qualquer outra. O abraço suave me pega desprevenida. Em meio a todos aqueles fios, a graciosidade dele ainda me surpreende. Ouço a porta abrindo. Mais pessoas estão entrando no quarto e circundando minha cama, mas eu nem ao menos os vejo. Lágrimas começam a escorrer por meu rosto fino e consigo erguer meus braços para abraçá-lo. Durmo novamente, mas desta vez sei que não será um sono tão longo. Somente algumas horas para descansar do esforço repentino. Mas o mais importante é que sei que ele está ao meu lado, segurando minha mão fria em meio à suas mãos quentes.